AS PERÍCIAS DE SAÚDE: O “ERRO MÉDICO”, O “ERRO FISIOTERAPÊUTICO” E O “ERRO JUDICIAL”.

Todos sabem que o saber promove a educação, que é o pilar fundamental de uma nação, e a educação permite que todas as áreas de uma sociedade se fortaleçam. Nesta linha de raciocínio, vamos direcionar o discurso para a interferência da falta de conhecimento multiprofissional e interdisciplinar em um universo específico de duas áreas fundamentais em um país: a Justiça e a Saúde.
Precisamos fazer uma reflexão crítica sobre o conhecimento técnico mútuo entre estas áreas de atuação. Pois, não são raras às vezes em que o desconhecimento do vocabulário e atuação técnica por profissionais destas áreas, compromete o resultado do trabalho de um ou de outro. E nosso foco está em dissertar, principalmente, sobre o desconhecimento (ou pouco conhecimento) do judiciário sobre as definições de termos fundamentais da saúde que possam interferir com a promoção de um julgamento acertado. Também neste texto referenciamos o desconhecimento normativo jurídico, dos profissionais de saúde que labutam no universo forense como auxiliares da justiça, comentando especificamente a atuação médica e fisioterapêutica.
A especificidade do texto tem relação com as “Perícias de Saúde” solicitadas pelos Magistrados, compondo capítulos importantes no universo legal, já referenciado pelo Código de Processo Civil em seções específicas para o Perito e para a Prova Pericial.
Para fundamentar o contexto, precisamos citar parte do texto do livro Medicina Legal do Professor Hélio Gomes (2003):
“[...]¨ Não basta um médico ser simplesmente um médico para que se julgue apto a realizar perícias, como não basta a um médico ser simplesmente médico para fazer intervenções cirúrgicas. São necessários estudos mais acurados, treino adequado, aquisição paulatina da técnica e da disciplina. Nenhum médico, embora eminente, está apto a ser perito pelo simples fato de ser médico. É-lhe indispensável a educação médico-legal, conhecimento da legislação que rege a matéria, noção clara da maneira como deverá responder aos quesitos, prática na redação dos laudos periciais. Sem esses conhecimentos puramente médico-legais, toda sua sabedoria será improfícua e perigosa.[...]"
Se levarmos em consideração que o profissional médico é um dos profissionais de saúde que possui capacidade e apoio legal para servir como auxiliar da justiça na função de perito (art. 145 do CPC), o recorte de texto citado pode ser transferido a outros profissionais de saúde. Ou seja, o psicólogo, o fisioterapeuta, o fonoaudiólogo, o assistente social, o odontólogo, o terapeuta ocupacional e qualquer profissional de saúde nomeado ou indicado para servir como ator no universo pericial, deverá se munir de educação forense para não comprometer o julgamento com seus laudos e pareceres oferecidos ao magistrado.
Neste sentido, associações específicas de classe direcionam seus esforços para a formação forense destes profissionais. Podemos citar as que postulam este objetivo: A ANMP – Associação Nacional de Médicos Peritos da Previdência Social; a ABFF – Associação Brasileira de Fisioterapia Forense; a ABOL – Associação Brasileira de Odontologia Forense; a
ABML – Associação Brasileira de Medicina Legal e a ACADEFFOR – Academia Brasileira de Fonoaudiologia Forense. Outras profissões mesmo sem participarem de associações específicas, já empreenderam cursos específicos, até de especialização, em atividades jurídico/forense.
Voltando ao discurso sobre o conhecimento do significado da palavra, uma das grandes dificuldades que observamos nos profissionais do Direito (e também fora dele) é a não dissociação dos termos “Saúde” e “Médica”. Ambos são tratados como se fossem a mesma coisa, e este pensamento obviamente não procede. Pois vejam que no parágrafo anterior nos referimos aos profissionais da área da “Saúde”, e o profissional médico é um destes profissionais. Imagine então o risco que corre um processo quando um magistrado entende como “Perícia Médica” uma perícia que não necessariamente é da matéria médica. Isto pesará negativamente contra a celeridade dos processos jurídicos, e poderá gerar desconforto entre os profissionais que participam do ato processual.
Atualmente, são comuns em “noticiários forenses” divulgações de classes profissionais ocupando o “palco judiciário”, com ações de posicionamento profissional contra outras, em função do ato pericial. E se for feita uma análise grosseira deste cenário, observaremos muitos pontos de desconhecimento técnico das partes envolvidas. Vejamos um exemplo muito comum nestes “noticiários”: “Fisioterapeuta não pode fazer perícia médica”. Vamos aos questionamentos: Será que a perícia referida é uma perícia médica? Por que se for, realmente a notícia está correta, pois perícia médica é ato médico. Será que o magistrado que nomeou este profissional sabe a diferença entre a perícia do médico e a perícia do fisioterapeuta? Será que este fisioterapeuta que aceitou sabe a diferença entre a perícia do médico e a sua modalidade de perícia? Será que os médicos sabem a diferença entre vossas perícias e as realizadas por fisioterapeutas.
De todos estes questionamentos, o que se refere ao conhecimento do magistrado parece ser o mais relevante. Não que os outros sejam irrelevantes, mas, como o profissional perito é auxiliar direto do juiz na solução da demanda, o “desconhecimento judicial” pode gerar “desconfortos jurídicos” às partes, ou ao menos a uma das partes. Então cabe aqui uma conceituação rápida sobre as diferenças que os magistrados necessitam saber sobre a perícia dos médicos e a perícia dos fisioterapeutas, e eventualmente os médicos e fisioterapeutas também necessitam saber.
Antes de entrar diretamente nestas diferenças, é fundamental que os magistrados (e também os profissionais da área da saúde) saibam que no ato pericial esta inserida uma ação transversal, pontual, cuja matéria tem o conhecimento de um profissional como fato determinante. Mas, algumas vezes este profissional deverá lançar mão da possibilidade de utilizar a opinião de outro profissional, para corroborar em partes de seu laudo/parecer, pois dificilmente uma perícia possuirá caráter mono profissional.
De uma forma didática, em uma perícia médica a análise profissional é voltada para a “deficiência/doença”, e em uma perícia fisioterapêutica a análise profissional é voltada para a “incapacidade físico-funcional” que as doenças determinam. Obviamente, mais explicações devem ser dadas, pois os termos “deficiência” e “incapacidade” também concorrem com especificidades em suas definições. Estas são calcadas pela OMS – Organização Mundial de Saúde (veja, não é Organização Mundial Médica), em suas classificações mais conhecidas: CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde) e a CIF (Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde). E o Brasil, como país membro da OMS, aplica os fundamentos de ambas as classificações. A maior parte da CID é de responsabilidade médicos, e em função disso muitos profissionais de saúde acham que os códigos da mesma só possam ser emitidos por médicos. Isto é um erro, pois os códigos da parte “Problemas Relacionados à Saúde” de sua definição tem relação com outros profissionais de saúde, e por eles podem (e devem) ser emitidos. Já a CIF, que foi desenvolvida após a CID, confere um aspecto mais explicativo (que é o que normalmente os magistrados querem) às doenças da CID. O mais interessante da CIF é que ela permite quantificação e qualificação da “saúde funcional”  dos periciados, ou seja, a real determinação do que o mesmo “não consegue fazer”.
Esta quantificação é instrumento fundamental na elaboração dos perfis quantitativos dos benefícios e das “punições” lavrados pela justiça pela figura dos magistrados, ou em processos administrativos. Então fica claro que qualquer doença deve ser diagnosticada pelo médico, utilizando os métodos que lhe cabem, conforme o disposto no seu Conselho Federal. Sendo assim, a definição de “deficiência” da CIF é compatível com doença, injúria, dano (físico ou mental), e seu diagnóstico é responsabilidade do médico. E, como toda e qualquer doença tem como conseqüência graus de incapacidades funcionais, quando esta incapacidade tiver relação com o movimento humano, sua quantificação e qualificação é ato fisioterapêutico, que também utiliza métodos que lhe cabem, conforme o disposto em seu Conselho Federal.
Esta é uma das razões pela escolha acertada de muitos magistrados da utilização de fisioterapeutas na justiça do trabalho como perito judicial, pois a quantificação e qualificação da incapacidade, associada à pesquisa do nexo da mesma com os movimentos laborais, são esclarecedoras para os mesmos. Muitas vezes, quando nomeado um médico experiente para ser perito (ou assistente técnico) em uma situação onde o diagnóstico da doença já é conhecido, e consequentemente não houve mudança de seu código CID, este lança mão de um Parecer Ad Hoc de um fisioterapeuta para a elucidação da incapacidade físico-funcional do seu periciado. O inverso é verdadeiro, quando um fisioterapeuta na mesma situação de perito judicial, ou de assistente técnico, não tiver conhecimento da doença do seu periciado, e este for relevante, deve solicitar o Parecer Ad Hoc de um médico. Por este motivo na justiça do trabalho está começando a ser fato comum a realização de “perícias conjuntas”, composta de médicos e fisioterapeutas. Nesta modalidade, com certeza o processo tem chances de ter uma resolução mais justa, e este é o objetivo.
Em resumo, o cotidiano nos mostra que a desinformação, ou a falta de educação comprometem o crescimento de uma nação e a qualidade de vida da mesma. No universo forense e de saúde, estes aspectos são comprometedores às atividades da justiça, referenciando aqui as atividades periciais. Então, a inter-relação de profissionais de saúde, e a destes profissionais com o sistema judiciário deve um objetivo a ser alcançado. Os envolvidos devem se destituir de vaidades, procurarem a educação continuada e promoverem a interdisciplinaridade, para que vossas margens de erro diminuam, e tenhamos como benefício práticas periciais que promovam resultados justos que propiciem, ou que tentem atingir, a pacificação social.

Autor:
Ricardo Wallace das Chagas Lucas – CBO 2236-05
Presidente da ABFF – Associação Brasileira de Fisioterapia Forense
ricardowallace@hotmail.com

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